
Uma vez, Malhôa pediu a um moleiro de Pedrógão que lhe emprestasse a burra para modelo, uma jumentinha ruça, bíblica, com atafais novos e patas ligeiras de fauno, que parecia modelada em barro para um presépio de Machado de Castro. O homem estremeceu, rolou o sombreiro nas mãos, e não quis que Malhôa pintasse a burra.
_Mas porquê?
_Pode o animal ter aí uma dor, e para que há-de a gente estar com questões?
_Mas – insistiu o mestre – eu também pintei o retrato do seu filho e da sua mulher, e não lhes fez mal nenhum.
_Deixá-lo! O meu filho e a minha mulher não me custaram dinheiro; e a burra custou-me quinze moedas. Por fim, lá o convenceu, e a jumentinha do moleiro anima hoje com o seu albardão mourisco de volta em meia-lua, uma das mais mais belas paisagens de Malhôa.
Este episódio é ainda Júlio Dantas que o conta, no seu livro Abelhas Doiradas, escrito em 1920.
Uma bela manhã, em Figueiró dos Vinhos, estava Malhoa, com as senhoras, em volta da mesa do almoço, quando a criada anunciou o irmão do regedor de Bairrão (uma das freguesias de Figueiró), que insistia em falar ao artista. Mandaram-no entrar. Era um homem de quarenta anos, cara de Páscoa, tisnado do sol, jaleca de Saragoça, polaina, varapau, um barrete vermelho de campino a rolar nas mãos felpudas:
_Ora com sua licença!
_O mestre perguntou-lhe o que queria. O homem coçou na cabeça, engoliu em seco, olhou em volta as senhoras, gaguejou, riu e acabou por dizer:
_Vocemecê é que é o Senhor Pintor Malhoa?
_Sim senhor. Que é que você quer?
_Queria saber quanto vocemecê leva por pintar umas alminhas do Purgatório para a esmoleira de estrada.
E, lanzudo, desconfiado, hesitante, a face curtida a arrepelar-se num tique nervoso, o zambujo ferrado de estaca no sovaco, contou que fizera aquela promessa às almas se não lhe morressem dois bois eu andavam doentes. O barbeiro da terra tinha-lhe pintado um painel por oito tostões – um ror de dinheiro ! - mas não estava obra acabada. Fora então que o irmão do regedor se lembrara de encomendar a obra ao Senhor Malhoa, que, por muito mal que a fizesse – dizia ele – sempre a havia de fazer melhor. O artista ouviu, acabou de enrolar o cigarro, e, perante o assombro de sua esposa, disse ao homem que aceitava a encomenda e que visse dali a oito dias buscá-lo.
_E quanto é que custa?
_Isso, nós veremos depois.
Passada uma semana, o homem lá veio, calça nova e pescoceira branca domingueira, bateu à porta, entrou, estacou de boca aberta diante de um painel das almas que era uma maravilha, (Malhoa pintara-o com todo o seu talento, sem lhe tirar o sabor da ingénua imaginária popular) e, coçando com ambas as mãos a cabeça chamorra, destampou, aflito:
_Valha-me o Senhor Santo Cristo, que isto vai para mais de oito tostões!
O artista tranquilizou-o. Não era nada. Ofereciam ambos aquele presente às almas do Purgatório. O pobre homem, com o suor do júbilo a empastar-lhe os cabelos da testa, riu, chorou, dançou, travou do painel, embrulhou-o na manta que trazia, e à saída, abraçando respeitosamente o pintor, disse-lhe a meia-voz, para as senhoras não ouvirem, estas palavras que eram a expressão suprema da sua gratidão:
_Ó Senhor Malhoa, venha daí beber um copo de vinho!
E aqui têm como, no pobre estrada de Bairrão, à poeira e ao sol, se está perdendo um retábulo que é a obra carinhosa de um dos príncipes da pintura portuguesa contemporânea.
Nota: -Já que não tenho o tal painel para vos mostrar deixo-vos uma aguarela das "Alminhas do Sr. da Pedra", que existem em Macinhata da Seixa, terra onde nasceu minha Mãe. O desenho a carvão é um auto retrato de Malhôa.
M.A.
Um artista ímpar, sem dúvida....
ResponderEliminarHá dois anos visitei o Museu Malhôa,nas Caldas da Rainha. Pensei encontrar mais quadros desse Artista naquele espaço, os poucos que se encontram expostos, são de uma beleza díficil de explicar. Só vendo! Francisca
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