Vou
chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está
tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A
professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se
aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”,
”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do
sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal
e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela,
mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não,
mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete
colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc.,
conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um
“complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo
“complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex
nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há
por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos
ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento
podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento
prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas
sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o
tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o
determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no
modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser:
Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a
progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase
declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e
o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”,
o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo.
Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga?
Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas
erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da
gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem
faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames
somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo
excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de
gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho
demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e
deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e
subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia,
holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e
interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto,
macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas
conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões
assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a
raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não
servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a
começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases
cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer,
às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas
flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente
tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros
também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas,
parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê
nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas.
Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e
inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar
tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e
um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece,
porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve
redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma,
não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação
a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu
pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos
tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos
altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos
trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos
burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me
perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e
subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática
Este texto é da autoria de Teolinda
Gersão. Escritora, Professora Catedrática aposentada da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Escreveu-o depois de ajudar
os netos a estudar Português. Colocou-o no Facebook.
Se o leitor ou leitora teve mesmo
paciência para ler o texto até final pensamos que não terá dado o tempo por
perdido. Parabéns ao sentido de humor de
quem o escreveu. Mais palavras para quê?
M.A.
1 comentário:
Exatamente o que penso, nem mais nem menos. A língua portuguesa é muito rica, para quê complicar.
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