Todos sabemos haver uma elevada
percentagem de médicos que, a certa altura da vida, se tornam também escritores. Esta profissão pode favorecer e mesmo
incentivar o gosto pela escrita. No estreito
contacto com pacientes, contam-se histórias de vida onde o drama está quase sempre presente e, perante as quais o médico toma o papel de um confidente. Assim, acumulam-se experiências
e são apontamentos, demasiado ricos para
ficarem apenas na sua memória ou fechados numa gaveta.
Se referi o drama, não significa que o caricato e divertido também não aconteçam
na relação médico doente. Alguns
episódios há que despertam o nosso bom humor e também merecem ser divulgadas. Enquadra-se
nestes últimos o caso que hoje contarei neste post:
_O Dr. M. Pinho Rocha (filho) meu conterrâneo e amigo, conceituado
oftalmologista no Porto, no decorrer de amena conversa que entremeava uma consulta com
meu marido, foi abordado por mim sobre
algo que eu sabia ele escrevera. Sorridente, confirmou e, de imediato, nos fez
oferta, autografada, de dois dos livros onde reunira, precisamente, algumas das suas recordações de médico.
Com a modéstia que lhe é
peculiar, advertiu logo serem histórias simples, sem pretensões de maior.
Posso até concordar que, estes livros, nem sejam obra literária de vulto, mas, para mim, têm um valor muito especial. Para além de
serem o fruto da atenção, observação e,
sobretudo, a apurada sensibilidade de um
homem bom, que neles imprimiu um cunho profundamente humano, muitas
das histórias, têm ainda a “saborosa” particularidade
de terem como protagonistas gente que eu também conheci. Em terras pequenas é fácil
isto acontecer, como calculam!
Começando então o relato da história que
escolhi para hoje, direi que a Ti
Ana aqui mencionada, devia esta sua
alcunha ao facto de vender aves de capoeira, no mercado da terra. O primeiro encontro
dela com o autor do livro deu-se, quando
este, ainda miúdo, caiu da bicicleta, na
rua perto de sua casa. A Ti Ana, que ia a passar, terá sido a primeira pessoa a
socorrê-lo. Entrou no “Marcelino”, uma taberna próxima, embebeu o seu lenço em
aguardente e, com ele, limpou aqueles joelhos esfolados, De seguida acompanhou a
criança até junto da família.
Começou, deste modo, uma
amizade que perdurou o resto da vida da Ti Ana. Com bastante carinho e graça a descreve, no
diálogo que existiu entre ele já, na condição de médico e ela como sua doente. Estas ditas
conversas eram, geralmente, salpicadas de vocábulos “bem pouco ortodoxos”, como
era jeito da Ti Ana e que o médico lá ia desculpando…
Mas, para abreviar, situemo-nos ao tempo em que, devido ao avançar da idade, a visão
da Ti Ana estava já tão diminuída que a
sua qualidade de vida se tornava cada vez pior… Após alguma luta, este médico
lá a convenceu a deixar-se operar.
Problema seguinte foi a ida para o hospital, “uma estreia
absoluta” para a Ti Ana, a qual acreditava também que, entrada em hospital… era sinónimo de antecâmara da morte!
O médico prometeu-lhe que
ela ficaria lá sob a sua protecção , mas, não deixou de lhe recomendar também, que naquele local, ela devia ter a maior contenção com a língua…
Na véspera da operação, possivelmente entre
suspiros, lá entrou
a Ti Ana no hospital e, conforme a rotina, administraram-lhe um clister de limpeza, facto
que a deixou fula. A partir daqui, darei a palavra ao médico e o que irão ler é
a real transcrição do seu livro:
…No dia seguinte de manhã pediu que me chegasse mais
ao pé dela e, baixinho, contou o que se tinha passado:
« Apareceu aqui uma lambisgóia com umas coisas, disse
que era para me lavar por baixo e até agradeci, mas, quando tal, enfiou-me pelo
c. dentro assim um canudo estreitinho e começou a meter água ou lá o que era, a
barriga começou a medrar; até que tive que dizer alto, senão ainda rebentava. A
sorte dela foi não tentar fazer o mesmo na boca do corpo, porque então ficava a
saber quem é a Ana das Galinhas! E já agora, diga-me uma coisa, era preciso lavar o c. por dentro por causa
das vistas?»
Não foi fácil explicar-lhe a razão de todos estes
cuidados prévios, mas, cá à minha maneira, sempre tentei que compreendesse.
Respondeu-me secamente:
«Agora está, está, e não se fala mais nisso»!…
(Excerto do livro “Memórias
de Médico”, do Dr. M. Pinho Rocha)
Espero ter divertido os
leitores com este delicioso episódio passado há muitos anos atrás, na minha terra, ao tempo
uma bonita vila (hoje cidade) da Beira Litoral.
A Ti Ana já partiu deste mundo mas o médico que a imortalizou deste modo,
felizmente ainda vive e, quem sabe, se já terá escrito muito mais histórias. Vou
tentar saber.
Qualquer dia trarei uma
outra qualquer que irei buscar aos livros que nos ofereceu.
M.A.
2 comentários:
Os médicos de província, tinham um papel muito importante, junto das populações. No desempenho das suas funções, muitas vezes o pagamento era feito com géneros (galinhas, fruta, batatas etc.). Normalmente, tinham uma vida muito modesta.
eu estou a adorar estas historias e saberes.
Espero que hajam mais!
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