Existindo apetência pela leitura, em especial por
poesia, facilmente se identificará quem hoje serve de título ao nosso post mas, no caso
de alguém ter dúvidas, por favor clique aqui para saber algo mais sobre esta grande
senhora, um dos nomes cimeiros da nossa
literatura contemporânea.
No entanto, do que eu hoje venho falar é, particularmente, de um texto escrito
por seu filho, o jornalista Miguel de
Sousa Tavares, publicado no jornal “O Público”,
em 12 de Junho de 1999.
Muito embora a
figura central deste texto seja a sua
mãe, ele fala também da casa
onde moravam, da importância que a poesia ali ocupava, daqueles com quem
conviviam, mas…tudo descrito ao jeito,
ainda, dos olhos da criança que ele foi.
Que bem escolhidas
foram as palavras neste desfiar de recordações, entretecidas de muita
ternura mas, onde também não se esquece um ou outro “embaraço” que aquela mãe causava sendo, de
certa forma diferente, da maioria das
outras mães.
Um retrato tão pormenorizado quanto expressivo dos
valores que ela lhe transmitiu. A forma como o ensinava a olhar para as pessoas
e as coisas, o levá-lo a aperceber-se da
diferença que a magia da poesia dita e escutada, pode ter, comparada
com a poesia apenas lida e, em suma, o ensinar a olhar o mundo em seu redor com «verdadeiros
olhos de ver» como, geralmente, só os
poetas conseguem fazer.
Um conjunto de ensinamentos que como este filho afirmou
terá sido a moral que perpassou pela sua
obra toda.
Hoje, mesmo passados estes anos, este texto não perdeu actualidade porque do que nele se fala são temas afinal, eternos!
Terminamos com
o poema de Sophia em que o filho se
inspirou e, ao qual ele foi buscar o
título:
E Ela Dança
Às vezes, quando a casa estava
adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual como escreveu
("bailarina fui mas nunca bailei"). Às vezes, convencia-se que havia
ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e
às vezes havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que
chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos
ladrões nem dos esbirros do "velho abutre": só tinha medo de
fantasmas.
Naquela casa, aprendemos
cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram todos uns
personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas
surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos
convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e
que esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a
precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou
alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz
ver o Benfica e jogava futebol comigo no jardim.
A segunda coisa sobre
poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é
oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou
mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos
de Shakespeare em inglês do século XVI, ou o "Erl König", do Goethe, em alemão. E quando ela
trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela
Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o
imenso "Llanto por Ignácio Sanchez Mejia". À mesa, entre a sopa e o
prato principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa das sete
da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma
naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em
latim ao "orate, frates!" do padre. Às vezes, naquele terror que as
crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos
pelo chão abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas
compras de Natal, ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes,
distraída, perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o
mundo inteiro à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio. Um dia, no
eléctrico a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela,
que rezava assim: "se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a
feche." E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros,
que fingem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e
silabada, recitando um poema: "se alguma janela o incomoda, peça ao
condutor que a feche e que nunca mais a abra."
A mim, todavia, ensinou-me
o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as
coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para
as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a
consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me
a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados
num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e
viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro.
Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi
a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela
justiça, "num sítio tão imperfeito como o mundo", mas ainda a
liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e
façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios,
condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o
entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a "manhã da praça de
Lagos" e noites com "jardins invadidos de luar". E ela dançará.
Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância.
Por delicadeza
Bailarina
fui
Mas
nunca dancei
Em
frente das grades
Só
três passos dei
Tão
breve o começo
Tão
cedo negado
Dancei
no avesso
Do
tempo bailado
Dançarina
fui
Mas
nunca bailei
Deixei-me
ficar
Na
prisão do rei
Onde
o mar aberto
E
o tempo lavado?
Perdi-me
tão perto
Do
jardim buscado
Bailarina
fui
Mas
nunca bailei
Minha
vida toda
Como
cega errei
Minha
vida atada
Nunca
a desatei
Como
Rimbaud disse:
Também
eu direi:
“Juventude
ociosa
por
tudo iludida
por
delicadeza
perdi
minha vida”
Quem
sabe se, com este nosso modesto apontamento, conseguimos despertar em algum dos
leitores o desejo de partir à descoberta da maravilhosa obra literária de
Sophia de Mello Breyner Andersen.
M.A.
2 comentários:
Os poetas são assim, têm uma sensibilidade tão apurada que são capazes de transmitir sentimentos que escapam ao simples mortal.
A MA tem o condão de nos despertar para o que de bom existe na literatura e na poesia, agora estou a ler um livro que me deram no Natal, o próximo será desta grande poetisa.
Uma infância "recheada" é meio caminho para uma vida em plenitude; eu, não convivi com grandes poetas nem poetisas, mas é inolvidável o cheiro das laranjas que o meu Avô cortava com o seu canivete, para nos dar!
A cada um, a sua poesia.
Beijo para ti.
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