Como tudo começou

02/02/12

FÉRREA DOÇURA DE MÃE – Júlio Machado Vaz *



A FÉRREA DOÇURA de minha mãe transformou os Machado Vaz em satélites agradecidos. Marido, filho e netos habituaram-se à opinião firme e não cortante, a apoio certo mas jamais incondicional, ao colo acolhedor e contudo sempre temporário. Ela não permitia que a sua força atrasasse o futuro de ninguém. Quando o primeiro bisneto nasceu, embalou-o com enlevo que reservava a todas as crianças, mas já não o reconheceu como herdeiro fiel e depositário da lenda familiar.
Quando o meu pai sofreu o primeiro enfarte, minha mãe disse, com envergonhada firmeza: “Se morrer, apenas fico por tua causa e dos meninos, a vida sem ele não faz sentido. Desculpa”. Abracei-a em silêncio, nada havia a desculpar – eu fora testemunha, fruto e voyeur invejoso de um árduo amor perfeito durante 50 anos.
Quando a velha dama risonha cantada por Neil Young tentou de novo seduzir meu pai, a vida dela rendeu-se ao horror permanente de o perder: vigiava-lhe passos, queixas, esgares e mesmo a sesta, inventava pretextos para o acordar porque lhe parecera demasiado quieto e a cabeça, derrotada, pendia sobre o peito. Como a fina inteligência, após o segundo enfarte, ele baloiçava entre a venerada lucidez e um estado confusional embrutecido, que o deixava frente à televisão em permanente e cego zapping. Enquanto o jornal amado permanecia virgem ao alcance da mão, de súbito analfabeta…
Eu abria a porta e perguntava como se sentia ela, que de imediato me chamava à (sua) realidade com um “ como achas o teu pai?” sem réplica possível. Entretanto, e sem eu saber, começava a perder-se na rua e a gerir o quotidiano à custa de papelinhos e aflitos regressos a supermercados, oficialmente decretados meros esquecimentos. E o filho psiquiatra, obediente, observava-o a ele… Até que um dia reparei no seu cabelo e percebi que a minha mãe mudara, a palavra “desleixo” não constava no seu vocabulário.
Ofereci-me para a levar ao cabeleireiro – “Ele fica sozinho…” “Estou cá eu, um dos rapazes leva-te”… “Não, deixa-me….” Aos gritos de raiva, face escondida nas mãos, choro convulsivo, como pudera ser tão néscio?
E à terceira foi de vez, o seu homem partiu; num sofrimento que envergonhou a Medicina, ela aconchegava-lhe os lençóis , “o pai ainda se constipa”. Quando lhe dei a notícia uma calma estranha invadiu o quarto e expulsou o delírio em que vivia, disfarçou a ordem do pedido, “Levas-me?” Perante o meu olhar atónito, beijou-lhe a testa e velou-o com a minha entre as suas mãos, afiançando-me que ambos trataríamos de tudo “para proteger os meninos”.
Todos fomos sendo esquecidos, talvez pelo esforço titânico para o manter a ele algures. E um dia as costas endireitaram-se, nos olhos faiscou de novo aquele verde que me assustava e enternecia, “Por favor, ajuda-me a acabar com isto.” Pedia auxílio e consentimento, era incapaz de trair, “Fico por tua causa e dos meninos…” Não consegui, e ela regressou às catacumbas do cérebro. O corpo resistiu 12 anos, o espírito há muito que se juntara a meu pai. Agora, espera-me em Cantelães. Onde lhe reencontrarei o colo. E bálsamo para a culpa não culpada que ainda sinto. Só ela o pode fazer, “vem, menino”. Abrindo sorriso e braços, lá onde repousa – no meio das (outras) flores.
 *Psiquiatra
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Caros amigos:
Admiro Júlio Machado Vaz (este homem é do Norte) e a sua pedagogia sobre sexualidade no sentido mais certeiro, ou seja, o conforme com a Natureza.
Os seus diálogos na rádio, sem falsos moralismos ou pudores, são notáveis. Não sei se todos sabem que é bisneto do Presidente Bernardino Machado e a Mãe era a cantora Maria Clara. Para os mais novos aqui ficam dois registos da sua voz cristalina em canções populares que entraram directamente no nosso património .
Por favor cliquem aqui
Vem isto a propósito deste maravilhoso texto já não recente mas que resolvi guardar. Apreciem .
E que vos preste.
A. F.

Nota da autora do post:-Foi de um querido amigo, nortenho, que recebi, há dias, este enternecedor texto que, tal como já tiveram oportunidade de ver, traduz toda a profundidade de sentimento de alguém que fala de sua mãe que acabou de falecer. O nome deste filho é por demais conhecido para que seja preciso apresentá-lo mas, porque o e-mail do meu amigo trazia, em anexo, um interessante apontamento, de quem lho mandara, não resisti a inclui-lo igualmente neste post, salvaguardando contudo a sua identidade, pelo que, apenas dou a conhecer as suas iniciais.
À semelhança do que aconteceu comigo, este texto ter-vos-á, sem dúvida, emocionado  mas fico convicta de que tereis gostado de o conhecer.
M.A.

2 comentários:

Zé disse...

É verdade, as mães sabem do que os filhos gostam..... Adorei o texto!!
Beijo

Quica disse...

Havia um programa na televisão com este psiquiatra, como M.A. diz e muito bem, tinha uma maneira simples de abordar os assuntos relacionados com o sexo. Não chocava e era pedagógico.

Não admira a ternura pela sua mãe, a sua postura era mesmo ternurenta.

Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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