Como tudo começou

26/09/12

A ANTIGA FÁBRICA DE CURTUMES DA CRUZ QUEBRADA

AS VOLTA QUE UMA PROPRIEDADE DÁ.... (Parte I)


Não há lugar ao imutável nem ao vazio. Mesmo o que, no nosso deficiente modo de comunicar, designamos de “imóvel” regista uma irrecusável mobilidade que o tempo confirma, posteriormente. Um edifício - a que também chamamos imóvel - sofre, inevitavelmente, transformações, quer na forma, quer na utilização, ao longo dos anos. E é interessante acompanhar essas mutações que se operam ao ritmo das necessidades, gostos e tendências da sociedade. Mas a leitura dessa dinâmica e a compreensão cronológica das suas diferente fases, sem perda da ligação ao lugar, apresentam-se, por vezes, complexas. Desvendar estas sequências e nexos é um exercício que se coloca frequentemente a quem, como nós, é tocado pelo fascínio da história local ou pela curiosidade que constantemente questiona o “porquê” e o “como” das coisas e das situações.

A Cruz Quebrada, embora já muito delapidada do seu património arquitectónico (mercê não do progresso mas da falta de sensibilidade, cultura e consciência cívica dos homens, que subordinam os seus anseios à acumulação de escudos), ainda conserva alguns elementos significativos da sua caminhada histórica, que deverão ser valorizados pela comunidade, como inequívocas referências identitárias que são. Entre estes, salienta-se o característico edifício-sede da Sociedade Instrução Musical e Escolar Cruz-Quebradense. Tentámos descortinar o seu percurso, desde as primeiras décadas do século XIX. Tudo indica que o espaço tenha sido utilizado, em primeiro lugar, por uma fábrica de curtumes, para depois passar a clube de recreio dos muitos veraneantes que frequentavam a zona no último quartel desse século e, finalmente, desde 1919, albergar a sede da popular e meritória colectividade popular.

A indústria dos curtumes no concelho

O território de Oeiras é cortado por uma rede de cursos de água que não só contribuíram para o desenvolvimento e riqueza da exploração agrícola mas também para a implantação de unidades industriais que deles careciam para o seu cabal funcionamento. Não foi só a utilização da água como força motriz mas também como elemento indispensável à laboração que fizeram do concelho de Oeiras um lugar de localização de vários e diversificados estabelecimentos.

A indústria dos curtumes exige o consumo de muita água no tratamento das peles. Situa-se, portanto, de preferência, junto de rios. Assim, no século XIX - a centúria do desenvolvimento industrial do concelho -, existiram quatro fábricas da actividade: em Algés, junto à ponte, de pequena dimensão, na propriedade de José Francisco Gravata; na Cruz Quebrada, na margem esquerda do Jamor, a de António Joaquim de Carvalho (fundada em 1834) e, na direita, a de Francisco Ferreira Godinho (1823); em Paço de Arcos, no mesmo local onde estivera a antiga fundição de ferro, a de Bento José de Freitas Guimarães (1842).

Em 1845, de acordo com a observação do administrador do concelho, no mapa das fábricas que enviou ao Governo Civil, estas três últimas unidades “não podem passar alem da perfeição a que chegarão as suas Manefacturas, por isso quanto a perfeição das mesmas nada mais se pode dezejar”. No que se relaciona com os quantitativos globais da sua produção anual, ainda testemunha que “está calculada em 1 200 Coiros Verdes em Solla, 2 600 ditos Salgados, em Solla, 2 750 Bezerros, 1 450 Vitellas Mouras [?], 1 150 Vitellas da Terra, 7 500 Pelles de Carneiro, 700 Pelles de Capado em Cordovão e 650 Atanados, alem de outras sortes de pelaria como pelles de Cavallo, e de Porco”. Com tais referências encomiásticas à qualidade e quantidade de peles tratadas, justifica-se que, particularmente as duas unidades da Cruz Quebrada, registassem progresso, na opinião daquela autoridade concelhia.

Os primeiros anos

Localizada na margem esquerda do Jamor, a fábrica de curtumes de António Joaquim de Carvalho foi fundada em 1834, ocupando uma vasta área que se situava entre a estrada de Oeiras (hoje Rua Sacadura Cabral) e o Tejo, que mais tarde veio a integrar-se no organizado parque Mira Torres. A propriedade, para além das dependências próprias da laboração, incluía ainda uma casa de habitação, possivelmente destinada a residência e escritório do proprietário.

Em 1845, para a produção, concorriam com a sua força de trabalho 20 operários, enquanto a sua congénere e vizinha dispunha de 28. No entanto, este número desceu drasticamente em 1852 para apenas seis. Destes, para se ter uma ideia do nível de instrução dos trabalhadores, somente um sabia ler e escrever!

A avaliar por este decréscimo de trabalhadores, a fábrica, em meados do século, deveria estar a passar por uma situação de crise. Talvez, por isso, tenha sido adquirida por Fortunato Simões Carneiro, em data que desconhecemos. Mas, na sua mão, a recuperação deve ter acontecido. Pelo menos em 1865, ano em que o P.e Francisco da Silva Figueira editou “Os Primeiros Trabalhos Literário”, este dá-nos conta de que já ocupava mais de 30 trabalhadores.

A extinção

Mas uma grande borrasca viria a atingir mortalmente a unidade fabril. De facto, apurámos que o estabelecimento foi integrado num conjunto de propriedades e de acções de bancos e companhias hipotecado, em 19 de Dezembro de 1876, ao Banco União do Porto, como segurança da quantia de 142 000$000 réis, deveras vultosa para a época, correspondente a nove letras que venciam a 31 de Dezembro de 1877 a 1883, de que era sacador Augusto Simões Carneiro e aceitante Fortunato Simões Carneiro. Desconhecemos qual a natureza da operação e até a relação, que se afigura de próximo parentesco, entre o dois intervenientes. A unidade fabril estava então avaliada em 10 000$000 réis.

Fortunato Simões Carneiro, que é considerado pelo P.e Francisco da Silva Figueira pessoa “empreendedora e benfazeja, residia em Lisboa, na Calçada do Marquês de Abrantes, onde possuía também uma “estância de carvão”. Em Cruz Quebrada, detinha a posse de várias propriedades, entre as quais a casa nobre que pertenceu ao marquês de Pombal, na Rua Sacadura Cabral.

Este proprietário e industrial faleceu, em data que ignoramos, deixando viúva D. Anunciada de Bono Carneiro e a dívida por liquidar. Desta só terá sido amortizada a importância de 10 300$000 réis, o que nos leva a supor que talvez o seu passamento se tenha verificado em 1877 ou, o mais tardar, em 1878. Em consequência de a viúva ou os filhos não terem providenciado a resolução da dívida, os bens foram levados à praça. Alguns destes foram a leilão judicial em 1883.

Em 1881, decerto, a fábrica já deixara de estar em actividade, porquanto não é assinalada no inquérito industrial que nesse ano se realizou. Teria encerrado algum tempo antes, pois, em 1887, referem-se-lhe como “antiga fábrica”, transmitindo a ideia de distanciamento temporal.

E assim terá terminado a laboração desta fábrica de curtumes. Não chegou a completar meio século de existência.

Novo proprietário - vida nova

A propriedade onde se encontrava implantada a fábrica também terá ido à praça. Deve, provavelmente, ter sido por esta via que a adquiriu, bem como a outro grande terreno anexo também hipotecado, Policarpo Pecquet Ferreira Anjos - instruído e abastado comerciante, em ascensão social, dotado de bom gosto, a quem se deve a construção do emblemático palácio Miramar (hoje, conhecido por palácio Anjos), em Algés.

O novo proprietário, em 1887, requereu autorização para proceder à “reedificação da propriedade” da “antiga fábrica de curtumes”. O edifício actualmente existente deve corresponder à requerida campanha de obras. E assim terão desaparecido os vestígios deste estabelecimento fabril. Mas ficou a memória guardada em documentos dos arquivos do Ministério das Obras Públicas e da Câmara Municipal de Oeiras a que nos arrimámos.

Cumpriu-se, deste modo, a primeira fase conhecida da existência desta propriedade. Da prosaica - e mal cheirosa - instalação fabril irá ganhar a alegre dimensão de espaço de recreação da elite de banhistas cruz-quebradenses.



Jorge Miranda

  SimecqCultura agradece ao Professor Dr Jorge Miranda a cedência deste artigo da sua autoria, já publicado no Jornal da Região, para publicação no nosso blog.
Bem Haja Professor!


Como nota, refiro que o Professor Jorge Miranda, é um profundo conhecedor e estudioso da história dos concelhos de Oeiras e Cascais
Fátima Camilo

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Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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