Como tudo começou

05/10/12

A SOCIEDADE INSTRUÇÃO MUSICAL E ESCOLAR CRUZ-QUEBRADENSE

AS VOLTAS QUE UMA PROPRIEDADE DÁ.... (Parte III)

A SOCIEDADE INSTRUÇÃO MUSICAL E ESCOLAR CRUZ-QUEBRADENSE



O concelho de Oeiras, pela sua proximidade de Lisboa, epicentro das ondas de mudança e modernidade, depressa se inseriu e acompanhou o surto de irradiação do nascente associativismo popular. No século XIX, nomeadamente na sua segunda metade, a realidade económica, social e cultural caminhava, progressivamente, no sentido da transformação e do corte com a pesada tradição, com a sua matriz rural, até então quase seu exclusivo pólo de actividade produtiva. A pacata e rotineira vivência, pautada pela exploração do agro e modeladora das mentalidades e dos ritmos e práticas sociais em consonância com os ciclos naturais, foi quebrada pela emergência de novas actividades económicas. O concelho, particularmente o seu litoral, mutara-se em estância de veraneio balnear, em zona de lazer, e, concomitantemente, em sentido inverso, em especial a partir dos anos 60, rendera-se à implantação de importantes unidades fabris. Assim, dois grupos dinamizadores da mudança destacaram-se: os banhistas estivais de extracção aristocrática ou burguesa e o operariado.

A população residente autóctone, que era atenta espectadora dos hábitos de vilegiatura dos banhistas, foi por estes influenciada e veio a reproduzir, noutros lugares, com as necessárias adaptações de dimensão e de meios, muitas das suas práticas de recreação, na pretensão do usufruto dos mesmos prazeres. Se os veraneantes fundaram clubes, onde, à noite, se divertiam, tocando e ouvindo música, dançando, representando, jogando e convivendo, por que não criar também sociedades que constituíssem o espaço de folguedo e confraternização da comunidade?

Os fiéis frequentadores estivais da praia da Cruz Quebrada, como abordámos em artigo anterior, fundaram o seu clube em data que desconhecemos, mas que pensamos poder situar-se na década de 80 do século XIX, instalando-o na antiga e desactivada fábrica de curtumes de António Joaquim de Carvalho/Fortunato Simões Carneiro. E também a população da localidade, a 9 de Outubro de 1880, materializou o projecto de constituição da Sociedade União Cruz-Quebradense, que, depois, veio a adoptar a designação Sociedade Instrução Musical e Escolar Cruz-Quebradense e a ocupar, em 1919, a sede do já então extinto clube de banhistas, onde se encontra ainda instalada.

A fundação

A sociedade foi fundada por João Marques, o elemento dinamizador, Augusto Albarraque, Francisco Ferreira Porquinha, Manuel Gonçalves, Joaquim Gonçalves e Sérvulo de Carvalho, com vista a proporcionar a recreação dos associados. De acordo com os objectivos, logo se constituiu um sol-e-dó que animava os bailes que a colectividade promovia. Este conjunto foi o embrião da reputada banda que pouco depois se viria a formar, da qual já temos notícia, pelo menos, desde 1889.

Inicialmente, a maioria dos sócios era constituída por operários da fábrica de curtumes de Francisco Ferreira Godinho (onde se instalou depois a Lusalite), industrial prestigiado que protegeu a colectividade, sem contudo, ao que parece, a ter instrumentalizado.

Em 1900, a sociedade tinha somente 30 associados (em 1981, mais de mil) que pagavam a quota semanal de 60 réis. A situação económica era próspera. As contas do ano transacto haviam fechado com o saldo positivo de 154$530 réis. Mas este desafogo financeiro devia-se, sobretudo, à gratificação que a banda recebia por participar na animação das corridas de touros que se efectuavam na antiga praça local, situada no perímetro da fábrica de Ferreira Godinho.

As sedes

A primeira sede da colectividade foi na Calçada do Salão. Gilberto Monteiro (“O Sítio da Cruz Quebrada - Nótulas de Micro-História”) admite que tenha sido no próprio edifício que ficou conhecido por “Salão”, hoje já demolido, mas onde estadiava o conde de Tomar, antes de adquirir a quinta de S. João das Praias e de mandar construir o palácio de S.ta Sofia.

Depois, para se situar mais próxima do coração da urbe que então crescia, passou para umas acanhadas instalações localizadas na estrada de Oeiras (actual Rua Sacadura Cabral) que não correspondiam às suas necessidades nem projectos. A desilusão era grande e procuravam-se soluções que originavam controvérsia entre os sócios. Então, com o influente apoio do barão de Sabroso (proprietário e residente no forte da Cruz Quebrada) e o tenaz empenho dos associados, a colectividade adquiriu um terreno no termo da Travessa da Praia (hoje, Travessa Pinto Correia), onde, com muito trabalho voluntário, ergueu a sua modesta terceira sede, ainda sem o espaço adequado às actividades que pretendia desenvolver.

Este edifício foi depois ocupado pela Cooperativa de Consumo 1 de Maio de 1898, numa estreita colaboração entre as duas associações, que era ditada em razão de vários membros da massa dirigente e associativa ser comum. Estas históricas instalações, testemunho da vitalidade do associativismo local, foram destruídas em consequência da construção da Estrada Marginal.

Mas a direcção não se dava por satisfeita com esta sede. A oportunidade de mudar para um imóvel condigno e espaçoso surgiu em 1919. Foi então alugado, pela vultosa quantia mensal de 120$00, o edifício onde estivera alojado o clube de banhistas (Gilberto Monteiro, “ O Sítio da Cruz Quebrada [...]”). A partir de então é este o imóvel, depois ampliado, que a SIMECQ ocupa e onde desenvolveu uma notável actividade.

A música

A motivação principal da constituição da colectividade encontrava-se na recreação. Assim, foi logo criado um agrupamento sol-e-dó, o que permitia já a realização de bailes. Paralelamente, abriu-se à instrução musical, com tanto êxito que não tardou que estivesse formada uma banda. Foi seu dedicado mentor o compositor e mestre Joaquim Vaz. Depois, em data que não conseguimos determinar, a batuta e a escola passou para a responsabilidade de Aureliano Soares - destacado dinamizador e organizador das festas da colectividade.

A banda filarmónica, com os seus 50 executantes, atingiu grande prestígio, sendo solicitado o seu concurso em frequentes festas e cerimónias, até em Lisboa e localidades da província. Por envelhecimento dos músicos e desinteresse das camadas jovens, extinguiu-se em 1948. E foi pena, pois perdeu-se um património árdua e laboriosamente construído.

Durante mais de 50 anos, a banda foi um alfobre de valores, como Joaquim Clemente que ingressou na banda da GNR.

O teatro

Se a banda deixou inscritas a ouro páginas da história da SIMECQ, também ao teatro que aqui se praticou se deve igual honra. De facto, depois de 1919, com a nova sede, já com salão e palco, foi a vez de a colectividade experimentar também a actividade teatral. Durante anos, manteve vivo o incentivo ao gosto pela arte de Talma. O seu grupo cénico deu a apreciar um repertório vasto e ecléctico que abarcou desde o drama à comédia, passando pela revista. Lugar também encontrou a revista de carácter local, como o sucesso que logrou alcançar “Melodias da Cruz Quebrada”.

A escola

Mas se houve actividade em que a SIMECQ se destacou foi, sem dúvida, na área do ensino, com a escola primária que, por sua iniciativa, começou a funcionar em 1927. Quantos milhares de jovens não devem à colectividade o soletrar das primeira letras e os quatro primeiros anos de escolaridade?!

Neste capítulo, temos o testemunho da determinação inquebrantável de uma colectividade que, bem implantada na terra, resolve os prementes problemas da população. Não havia escola primária na Cruz Quebrada. As crianças tinham de se deslocar ao Dafundo ou a Caxias. Reclamações, reivindicações... e nada. Até que a instituição decidiu substituir o Estado do cumprimento de um dever. O arranque da meritória iniciativa foi dado por António da Cunha Flores e, depois, durante muitos anos, a escola foi dirigida pela professora D. Ilda Nazaré Laje. Outros professores, com a sua dedicação, mantiveram viva e operante a escola primária da SIMECQ - justo orgulho da colectividade.

Ligada à instrução, nas vertentes da informação e formação, dentro das preocupações culturais da colectividade, surgiu também a iniciativa jornalística. Assim, em Outubro de 1959, publicou-se a edição única de “O Cruz-Quebradense”, que, posteriormente, entre Fevereiro de 1967 e Fevereiro de 1972, voltou a editar-se, com a periodicidade mensal, assumindo-se de carácter local.

Por toda esta polifacetada e rica actividade, para além da desportiva que aqui não destacámos por falta de espaço, a SIMECQ foi considerada “Instituição de Utilidade Pública”, a 22 de Maio de 1926, e, posteriormente, honrada com a concessão do grau de cavaleiro da Ordem da Benemerência.

Pelo secular trabalho que desenvolveu, a Sociedade Instrução Musical e Escolar Cruz-Quebradense ocupa um lugar cimeiro no contexto das colectividades concelhias. Olhando para trás, perante tão rica história, não resistimos a exclamar: valeu a pena ter sido fundada! Honra lhe seja feita.


Jorge Miranda

SimecqCultura agradece ao Professor Dr Jorge Miranda a cedência deste artigo da sua autoria, já publicado no Jornal da Região, para publicação no nosso blog.


Bem Haja Professor!


Como nota, refiro que o Professor Jorge Miranda, é um profundo conhecedor e estudioso da história dos concelhos de Oeiras e Cascais


Fátima Camilo



1 comentário:

Quica disse...



O jornal das Regiões, publicou vários artigos do Professor Jorge Miranda sobre o concelho de Oeiras.

Sempre que saía esse periódico, era com agrado que lia a história do nosso concelho.

Felizmente que existem estudiosos, doutra forma havia um desconhecimento total das nossas origens.

Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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