Como tudo começou

01/10/12

O CLUBE DA CRUZ QUEBRADA

imagem retirada daqui

AS VOLTAS QUE UMA PROPRIEDADE DÁ.... (Parte II)

O CLUBE DA CRUZ QUEBRADA

Em artigo anterior debruçámo-nos sobre a antiga fábrica de curtumes de António Joaquim de Carvalho/Fortunato Simões Carneiro, situada na Cruz Quebrada, numa propriedade localizada entre a estrada de Oeiras (actual Rua Sacadura Cabral) e o Tejo. Agora, seguindo a cronologia das sucessivas ocupações da propriedade, deter-nos-emos no Clube da Cruz Quebrada.


O afluxo de veraneantes ao litoral oeirense cresceu na segunda metade do século XIX. A evasão da capital, quando começava o estio, significava não só uma prática de bom gosto como a fruição de elevado estatuto social. Demonstrava também estar-se na moda e ser-se moderno. Mas já não era só a nobreza tradicional que estadiava nas velhas quintas dos arredores, carregadas de história e de pergaminhos aristocráticos. Igualmente, a nova nobreza endinheirada e a burguesia em vertiginosa ascensão social, mercê do enriquecimento que lograra nas actividades comercial, industrial ou financeira ou no exercício de profissões livres (como hoje, particularmente a advocacia e a medicina) ou ainda nas prestigiantes carreiras política ou do funcionalismo público.


Quando se verificou o crescimento da moda do veraneio balnear, poucas eram as famílias que já possuíam casa própria em consonância com o seu “status”, no litoral. Na sua ausência, algumas mandaram construir opulentas mansões ou graciosas vivendas, de acordo com o volume e o peso dos seus cabedais. Mas a maioria limitou-se a arrendar, todos os anos, as pequenas e modestas casas dos autóctones, onde ficava alojada em más condições. Contudo, a imposição social e o prazer de ir a banhos justificavam o sacrifício... Que raio, não se ia para a praia para ficar encerrado ou demoradamente em casa! De manhã, a praia era o “salão” de convívio; de tarde, voltava-se à praia, passeava-se no campo ou convivia-se no jardim ou parque públicos (quando passaram a existir). De noite, sim, fazia falta um espaço com capacidade para a realização dos tradicionais serões de cavaqueira, jogo, música ou baile. Como as jovens casadoiras poderiam encantar os eventuais pretendentes, com os gorjeios harmoniosos do seu canto ou com o hábil dedilhar das teclas do piano ou das cordas do violino ou violoncelo? Enfim, vilegiatura sem serão, sem convívio palrador, não era de... bom tom. Não era nada! Havia, pois, que ocupar o ócio nocturno. Mas como e onde? Este o problema, a lacuna que era necessário colmatar. Os mais poderosos - os que já possuíam palácios nas chamadas quintas de recreio ou os que mandaram edificar mansões ou moradias - tinham este óbice resolvido e, assim, mantinham a animada coesão do seu restrito e fechado círculo de relações. Aos outros, os “aspirantes”, que ansiavam entrar na alta roda (no “jet set”, como diríamos hoje), estes espaços estavam frequentemente vedados. É que havia estratos que dividiam os privilegiados entre si. Mas também as casas não teriam capacidade para acolher, simultaneamente, tanta gente. No entanto, impunha-se, para que a vilegiatura valesse mais a pena, que as noites pudessem ser aproveitadas num espaço que propiciasse a desejada interpenetração social, com base no convívio e no desenvolvimento de actividades lúdicas de entretenimento colectivo que a todos motivasse. É assim que surge a ideia, entre os banhistas, da criação de uma associação, a que chamavam clube - um espaço suficientemente amplo e de admissão restrita, onde os que estanciavam coubessem: um espaço colectivo seu.
O clube de banhistas
Na área do concelho de Oeiras, o primeiro clube deste tipo a nascer deve ter sido o de Paço de Arcos, em Setembro de 1863, decerto sob o impulso do marquês de Fronteira e d’Alorna. Talvez mesmo tenha sido a mais antiga associação constituída no concelho. Nele a admissão era rigorosamente reservada a sócios, que pagavam quota, e a convidados. Tinha carácter elitista e, consequentemente, era fechado à população local.


Possivelmente, seguindo este modelo, a colónia de veraneantes da Cruz Quebrada fundou também o seu clube - “o clube chic da gente fina, dos banhistas” (Gilberto Monteiro, “O Sítio da Cruz Quebrada - Nótulas de Micro-História”).


A mais recuada notícia que conhecemos em que explicitamente é referido reporta-se ao ano de 1891 (“Jornal do Comércio”, 3/10/1891) e a derradeira é de 1907 (“O Mundo”, 4/9/1907). No entanto, a sua fundação deve ser de data anterior.


O clube ocupou as instalações da antiga fábrica de curtumes de Fortunato Simões Carneiro, com certeza depois de estas terem ido à praça, cerca de 1883. Por esta via, devem ter passado à posse do conhecido e rico negociante e proprietário Policarpo Pecquet Ferreira Anjos. Este requereu autorização para as “reedificar”, em 1887. As pretensões do novo proprietário parecem ajustar-se aos fins do clube, pois sabemos, através do interessante e valioso trabalho que o Dr. Gilberto Monteiro legou, que este dispensou à associação, de que era também frequentador, as instalações da ex-fábrica “já com [a] disposição arquitectónica para salão de festas e recreio”. Isto é, o edifício já comportaria o grande salão e o palco que subsistem na actual sede da SIMECQ. Parece, pois, claro que a execução das obras requeridas tinham já o propósito de adequar o edifício à actividade do clube. Assim, se este, porventura, não existia já, a sua fundação poderá situar-se em cerca de 1887.
O parque Mira Torres
Policarpo Anjos não só adaptou o edifício como também criou o parque Mira Torres, na extensa propriedade que se estendia desde a estrada de Oeiras até ao areal. Na parte superior do terreno, desfrutando de uma espectacular vista, localizava-se o clube.


A arborização do recinto, nomeadamente pinheiros, convidava ao gozo da sombra, nas cálidas tardes de Verão. Aqui as crianças dispunham de espaço para, em segurança, brincar e os adultos para passear, conviver, praticar alguns jogos e organizar as quermesses tão na moda.


O parque e o clube depressa se transformaram em pólo de atracção e de valorização da povoação. E do confinante empreendimento de casas de habitação para banhistas que Policarpo Anjos promoveu nos terrenos que possuía a Poente da antiga unidade fabril, conjuntos que, como assinala Gilberto Monteiro, ficaram conhecidos por “Colmeias” e “Correnteza do Parque”...
 sócios e os frequentadores
O Clube da Cruz Quebrada não servia apenas os banhistas desta povoação. Os que estanciavam em Linda-a-Pastora e na Boa Viagem tinham aqui também o seu pouso. Igualmente de Dafundo, Algés, Pedrouços e até de Paço de Arcos afluíam frequentadores, expressamente convidados, seguindo o princípio do estabelecimento de relações de próxima cordialidade com as comunidades vizinhas. Era costume até o clube dedicar a realização de festas às colónias balneares de outras localidades.


Por aqui passaram “nomes célebres de políticos, ministros, fidalgos, escritores, artistas e ‘tutti quanti’ brilhava na época” (Gilberto Monteiro, “O Sítio da Cruz Quebrada - Nótulas de Micro-História”). Entre estes sócios e frequentadores do clube, destacam-se, pela sua participação activa, algumas personalidades que deixaram assinalável presença nas letras, como Henrique Lopes de Mendonça, Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão, D. Alberto Bramão, etc.


Em 1896, pertenciam à direcção José Culmieiro Silveira (Chaves), Jordão de Almeida e Carlos Sequeira (“O Liberal”, 27/9/1896).

As festas
Fundado com o objectivo de constituir um espaço de convívio e recreação da população estival da Cruz Quebrada, o clube, a avaliar pelas frequentes e relevantes notícias que a imprensa da capital inseria, cumpriu a sua função. Parece até ter desenvolvido uma actividade modelar.


Para além do entretenimento no jogo (manilha e voltarete), havia lugar ao convívio e à conversa sobre temas políticos, literários, artísticos e sociais. Aqui, “na Cruz Quebrada, como disse [...] Lopes de Mendonça, têm-se feito brilhar todas as artes, a poesia, a música, o canto, o teatro, a pintura, a dança e agora [...] brilhou com todo o esplendor de acepipes a arte culinária” (“Correio da Manhã”, cit. Gilberto Monteiro, “O Sítio da Cruz Quebrada [...]”).


Não surpreende que Lopes de Mendonça se tenha assim referido às iniciativas do clube. Se, por um lado, promovia serões culturais apoiados em variados e atraentes programas, que integravam a actuação de conjuntos ou instrumentistas a solo, recitação de poesia (muitas vezes pelo próprio autor) e canto, também realizava, por outro, bailes, muito concorridos, com ceia, que chegavam a terminar às 6 ou 7 horas da manhã! Temos notícia de se ter atingido a participação de 66 pares, “no meio do maior entusiasmo e animação”. A imprensa referia-se-lhes encomiasticamente: “magnífico”, “deslumbrante”, “brilhante”, “esplendido”, etc. - um esplendor de outros tempos, que não volta! Nem já praia há...

 

Jorge Miranda


SimecqCultura agradece ao Professor Dr Jorge Miranda a cedência deste artigo da sua autoria, já publicado no Jornal da Região, para publicação no nosso blog.

Bem Haja Professor!

Como nota, refiro que o Professor Jorge Miranda, é um profundo conhecedor e estudioso da história dos concelhos de Oeiras e Cascais

Fátima Camilo

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Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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