Como tudo começou

10/01/13

FALANDO DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDERSEN




Existindo apetência pela leitura, em especial por poesia, facilmente se identificará  quem  hoje serve de título ao nosso post mas, no caso de  alguém ter  dúvidas, por favor clique  aqui para saber algo mais sobre esta grande senhora, um dos  nomes cimeiros da nossa literatura contemporânea.
No entanto, do que eu hoje  venho  falar é, particularmente, de um texto escrito por  seu filho, o jornalista Miguel de Sousa Tavares,  publicado no jornal “O Público”, em 12 de Junho de 1999.
 Muito embora a figura central deste texto seja  a sua mãe, ele   fala também   da casa onde moravam, da importância que a poesia ali ocupava, daqueles com quem conviviam, mas…tudo descrito  ao jeito, ainda, dos olhos  da criança que ele foi.
 Que bem escolhidas foram as palavras neste   desfiar de recordações, entretecidas de muita ternura mas, onde também não se esquece um ou outro  “embaraço” que aquela mãe causava sendo, de certa forma diferente,  da maioria das outras mães.
Um retrato tão pormenorizado quanto expressivo dos valores que ela lhe transmitiu. A forma como o ensinava a olhar para as pessoas e as coisas, o  levá-lo a aperceber-se da diferença que   a magia da poesia dita e escutada, pode ter, comparada com a  poesia apenas lida e, em suma,  o ensinar a  olhar o mundo em seu redor com «verdadeiros olhos de ver» como, geralmente,  só os poetas conseguem fazer. 
Um conjunto de ensinamentos que como este filho afirmou terá sido  a moral que perpassou pela sua obra toda. 
 Hoje,  mesmo passados estes anos, este  texto não perdeu  actualidade porque do que nele se fala são  temas afinal, eternos!
Terminamos  com o poema de Sophia em que o  filho se inspirou e, ao qual ele foi buscar  o título:

E Ela Dança

Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual como escreveu ("bailarina fui mas nunca bailei"). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do "velho abutre": só tinha medo de fantasmas.
Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol comigo no jardim.
A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de Shakespeare em inglês do século XVI, ou o "Erl König", do Goethe, em alemão. E quando ela trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso "Llanto por Ignácio Sanchez Mejia". À mesa, entre a sopa e o prato principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa das sete da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em latim ao "orate, frates!" do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal, ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída, perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio. Um dia, no eléctrico a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: "se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche." E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fingem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando um poema: "se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca mais a abra."
A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, "num sítio tão imperfeito como o mundo", mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a "manhã da praça de Lagos" e noites com "jardins invadidos de luar". E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância.

Por delicadeza

Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado

Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse:
Também eu direi:

“Juventude ociosa
por tudo iludida
por delicadeza
perdi minha vida”

Quem sabe se, com este nosso modesto apontamento, conseguimos despertar em algum dos leitores o desejo de partir à descoberta da maravilhosa obra literária de Sophia de Mello Breyner Andersen.
M.A.

2 comentários:

Quica disse...


Os poetas são assim, têm uma sensibilidade tão apurada que são capazes de transmitir sentimentos que escapam ao simples mortal.

A MA tem o condão de nos despertar para o que de bom existe na literatura e na poesia, agora estou a ler um livro que me deram no Natal, o próximo será desta grande poetisa.

Zé Resende disse...

Uma infância "recheada" é meio caminho para uma vida em plenitude; eu, não convivi com grandes poetas nem poetisas, mas é inolvidável o cheiro das laranjas que o meu Avô cortava com o seu canivete, para nos dar!
A cada um, a sua poesia.
Beijo para ti.

Sociedade de Instrução Musical e Escolar Cruz Quebradense

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